A contemporaneidade é marcada por avanços tecnológicos, que afetaram conceitos sociais de maternidade e paternidade, dando surgimento não mais à um único modelo de família, mas a configurações familiares diversas. As diversas possibilidades de anticoncepção, o divórcio e o recasamento, a exigência de uma carreira profissional, a necessidade de estabilidade financeira, bem como de aquisição de bens, dentre outros aspectos, tem sido um fenômeno constante na sociedade atual. Antigamente negada, a opção de tornar-se mãe ou decidir quando isso acontecerá, passa a fazer parte do cotidiano de algumas mulheres.
Na contramão desses avanços surge o tempo. Há um tic tac do relógio biológico do casal, mas principalmente da mulher. Um tic tac que marca a passagem de um tempo complexo e contraditório. Complexo, porque ao prolongar-se pode ser um obstáculo à realização do projeto parental, já que a taxa de fertilidade da mulher cai significativamente após os 35 anos, verificando-se diminuição da sua reserva ovariana e baixa qualidade de seus óvulos. Embora de maneira menos drástica, a taxa de fertilidade no homem também diminui. Dessa forma, podem se deparar com patologias em seu aparelho reprodutor que os tornem inférteis.
É também um tempo contraditório, porque do outro lado da impossibilidade de conceber, geralmente há um casal que deseja constituir uma família e que se preparou para receber esse bebê do ponto de vista financeiro, profissional. Construiu sonhos. Criou um bebê imaginário, que logo, logo se tornaria real e daria um outro rumo às suas vidas. Bastaria agregar a esse desejo relações sexuais no período fértil. Pronto! É só esperar!
Mas o relógio da mulher seguiu a sua programação… Tic tac, tic tac… E o homem, ah… Com esse não tem problema… Se a mulher não engravida, raramente o casal pensa que pode haver algo errado com ele. Com frequência e erroneamente, a cultura popular atribui a causa da dificuldade para engravidar à mulher, e quando atribuída ao homem, vem associada à impotência sexual.
Tic tac… Tic tac… A gravidez não acontece e o casal busca ajuda em uma clínica de reprodução assistida. Exames… Muitos exames. Procedimentos de maior ou menor complexidade e a infertilidade é constatada. Se a causa é identificada como feminina, a ilusão do controle de sua fecundidade se esvai. Se masculina, frequentemente pode gerar sentimento de perda de sua masculinidade. Em ambas as situações, o projeto de família é substituído por medo, insegurança, tristeza, raiva, dúvidas, frustração e decorrente perda do controle de seus corpos. O lugar destinado ao sexo não mais é o de risco de gravidez, de acidente, mas aquele da programação e controle exigidos pelas técnicas. O desejo de um filho sai da intimidade do casal e passa a ser compartilhado com uma equipe técnica, na qual é depositam sua esperança. Mas não sem dor psíquica, sem angústia.
A vida lá fora parece trazer às ruas, aos shoppings, aos supermercados, todos os casais grávidos e os bebês recém-nascidos da cidade. Não dá para evitar, como pode ser feito com os convites para aniversários de um ano do bebê ou chá de fraldas. Tristeza, decepção, culpa, projetos de vida dilacerados. “Por que comigo/conosco?”, alguns se perguntam, pois para a maioria das pessoas procriar é algo natural e realizado a dois. Para os casais inférteis, a vida por vezes é paralisada, na busca incessante pelo filho que não vem. Se aproximam mais ou se afastam. Cada um tem uma forma particular de vivenciar a infertilidade e seu tratamento, cabendo ao psicólogo uma escuta ativa, favorecendo ao casal a expressão de seus sentimentos e percepções. A travessia de cada etapa do processo, com suas particularidades, requer um acompanhamento psicológico, ressaltando a importância do respeito aos sentimentos e necessidades do outro.
Nesse tic tac, nesse funcionamento do relógio biológico não só da mulher, mas do casal, pensar preventivamente pode ajudar na preservação da fertilidade. O mês de junho foi escolhido para ser o mês de conscientização da importância de preservar a fertilidade e por isso nossa reflexão acima sobre os desafios enfrentados pelos casais ao serem diagnosticados inférteis. Atitudes como usar preservativo para evitar doenças sexualmente transmissíveis, evitar o uso abusivo de álcool, evitar o uso de drogas (tabaco, crack, maconha, etc) e controlar o sobrepeso, podem auxiliar na manutenção da fertilidade. Além disso, no caso de adiar o projeto de maternidade ou de tratamento para o câncer, é possível congelar óvulos e espermatozoides.
Embora no início do processo possam dar a alguns casais a impressão de que o sucesso na busca de um filho biológico é garantido, as técnicas de reprodução assistida oferecem aos casais inférteis possibilidades de tornar viável o projeto parental. É um suporte da tecnologia ao sonho do casal, uma oportunidade de resgatar a autoestima e favorecer o encontro do sujeito consigo mesmo.
Lia Mara Netto Dornelles – Psicóloga da Clínica ProSer
CRP 07/05865