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Coronavírus versus Reprodução Assistida

Coronavírus versus Reprodução Assistida

Lia Mara Netto Dornelles

Psicóloga clínica, membro da equipe da Clínica ProSer – Fertilidade e Reprodução Assistida (Rio Grande do Sul), membro do Comitê de Psicologia da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana e da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (São Paulo), doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pós-doutora pela University of Warwick (Inglaterra).
Trabalho apresentado no XXIV Congresso Brasileiro de Reprodução Assistida, realizado on-line no período de 1 a 3 de outubro de 2020.
Correspondências referentes a este artigo devem ser endereçadas para: liamaradornelles@gmail.com

 

 

Coronavírus versus Reprodução Assistida: Idealizações, Fantasias e Frustrações

 

“Coronavírus não é outra coisa além de um vazio, sem cheiro, sem cor, sem som”, como nos diz Yolanda Gampel (2020, p. 1), psicanalista israelense. É um vazio contínuo que invade nosso psiquismo, sem que tenhamos a possibilidade de controlar seu ingresso, sua implantação e seus efeitos. Um vazio que gera angústia.

 

A pandemia criou um cenário sem precedentes, afetando drasticamente nossas vidas. A esse respeito, Brandão (2020, p. 2-3) nos diz:

 

A humanidade inteira ameaçada por um inimigo invisível e feroz. A partir de 15 de março nossas vidas começaram a mudar completamente e como se estivéssemos no escuro, sem muitas orientações, pois ninguém sabia quase nada dessa nova fonte de sofrimento, fomos interrogando como viver agora no espaço da incerteza e insegurança.

De repente, fomos concluindo que o que sempre apregoamos como o mais eficaz remédio para ansiedade, dores e medo – o contato humano –passou a ser daqui para frente o maior mal. A palavra isolamento social começou a ser a ordem do dia e começamos a entender que para não morrer ou contagiar outras pessoas teríamos que nos retirar de cena. Você já tinha tido um pesadelo semelhante a esse? O impacto do real nas subjetividades.

 

 

Gampel (2020, p. 1) refere que o coronavírus se apresenta sob a forma de “uma doença corporal, uma turbulência emocional, uma pulsão desenfreada e uma dificuldade de interpretar um mundo que não parece possível de ser interpretado.” Um mundo VUCA, termo criado por pesquisadores nos anos 90 para se referir a características marcantes do mundo contemporâneo: volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade.

 

O vírus é um ente microscópico, um ser vivo, ao mesmo tempo com características de objeto inanimado, potente o suficiente para revolucionar o modo de vida planetário e para causar uma descontinuidade que pode abater nossa onipotência (Gampel, 2020). Horenstein (2020) aponta que pensar em um vírus como estrangeiro limita nossa possibilidade de defesa e, assim, seria suficiente imaginarmos que, ao fecharmos fronteiras e negarmos vistos, permaneceríamos ilesos. Por outro lado, existe a concepção de que nada há de estranho em nós, pois o estrangeiro é sempre o outro – a ameaça é negar que a transmissão de um vírus se dá por enlaces e que a espécie humana é humana em função de seus laços. Observa-se, por conseguinte, a implicação de uma força brutal para expulsar a ideia de perigo para fora, porque os estrangeiros nos constituem. Portanto, não há combate efetivo contra um vírus sem considerar que “ele também se aninha ou irá se aninhar em nós, em nossas relações, dentro de nossas fronteiras sempre porosas com o outro” (par. 6).

 

A cria humana nasce biologicamente prematura, em uma condição de desamparo e dependência de um outro que a alimente e proteja. Para Horenstein (2020), essa condição nos dá a ilusão desse outro sem falta, detentor do poder de nos salvar. Porém, com o tempo, essa ficção se desfaz – o que é fundamental na constituição da estrutura psíquica de cada um de nós. Diante de uma situação crítica, depositamos não mais nos nossos pais, mas nos outros, o exercício da função de nos cuidar. Acreditar que haja esse outro – uma lei, um médico, por exemplo, é também uma ficção, pois esse outro que desejamos que nos cuide enfrenta a mesma perplexidade e está desamparado em face da mesma angústia que nos atinge. Perceber que esse outro está tão desvalido quanto nós provoca angústia e paralização e, como explicam Verztman e Romão-Dias (2020), essas situações favorecem o surgimento de experiências coletivas de dor, sofrimento ou desalento.

 

Nesse cenário de pandemia, segundo os autores, fomos capturados pela surpresa, pelo inusitado, e passamos a vivenciar uma situação da qual não temos registro imaginário ou simbólico prévio, o que nos desorganiza e questiona nossas certezas. O perigo está próximo a nós – naqueles com quem trabalhamos ou com quem dormimos, de quem compramos ou para quem vendemos, com quem estudamos ou dançamos. A via de contágio é com aqueles com quem temos um contato mais próximo (Horenstein, 2020).

 

Nos encontramos em vulnerabilidade. Perdemos a nossa rotina habitual, nossos contatos sociais. Segundo Gil (citado por Verztman & Romão-Dias, 2020), essa situação não causa somente uma atmosfera de medo, mas uma inundação; cada um de nós precisa encontrar uma forma própria de não se afogar nessa inundação e, assim, se manter vivo. O confinamento compulsório decorrente requer um ajustamento na rotina, causando ansiedade, angústia, irritabilidade e desconforto diante da nova realidade. Sentir-se depressivo ou ansioso nesse momento, são reações esperadas (Mari, 2020). É uma vivência catastrófica, considerando seu potencial traumático (Mari, 2020; Verztman & Romão-Dias, 2020), que nos faz reviver experiências subjetivas precoces, com zonas de indiferenciação predominantes, e requer transformação (Verztman & Romão-Dias, 2020).

 

No cenário atual, o mal-estar do sujeito contemporâneo, referido por Birman (2014), ganha força. Esse mal-estar, uma constante na subjetividade, se inscreve com maior ou menor predominância nos registros do corpo, da ação e das intensidades, inscrições fortemente presentes no contexto da pandemia. O corpo, considerado o único bem do sujeito contemporâneo, transforma-se em caixa de ressonância desse mal-estar, denunciando que algo não está bem. Em face da ameaça de ser contaminado ou de contaminar outras pessoas, nosso corpo torna-se o foco do cuidado e da apreensão. É reforçada, então, a ação, expressa pela necessidade imperiosa de higienização, com grande parte da população criando um estado de alerta constante – um fantasma da morte que ronda. Segundo o autor, o agir, ao qual relaciono e acrescento o contexto de ameaças e medo, passa a ser o imperativo categórico. O terceiro registro do mal-estar contemporâneo, o das intensidades, é influenciado pelo excesso, que afeta o sujeito e posteriormente se expressa como sentimento. Aqui, diversas modalidades de excesso se apresentam com o vírus relativas, por exemplo, à expansão do vírus, ao número de mortes e de indivíduos com sequelas, à necessidade de isolamento social, ao abismo em que se encontra a economia, à suspenção temporária ou ao adiamento de diversos serviços, incluindo os tratamentos de reprodução assistida.

 

A pandemia atingiu todos como seres humanos, mas farei aqui um recorte me detendo aos casais que necessitam do auxílio das técnicas de reprodução para engravidarem. Trata-se de um período de desafios. Devido à pandemia, alguns tratamentos tiveram seu início adiado, enquanto outros tiveram que ser interrompidos por precaução, para serem retomados posteriormente. É um cenário de medos e incertezas. Como sonhar com o projeto de parentalidade e buscar a sua realização? Nesse momento, a impossibilidade de conceber e gestar de forma natural, aliada à necessidade de recorrer a tratamentos de reprodução assistida, apresenta singularidades.

 

O projeto de parentalidade se constitui, na maioria das vezes, em um fato transcendente e dentro de um projeto vital mais amplo, compartilhado. É o momento em que o casal possibilita a si próprio um ato fundamental: a criação de uma nova família. Ter filhos possibilita hierarquizar o próprio lugar na cadeia genealógica, os laços de filiação e o valor das histórias familiares e pessoais, mobilizando o ilusório equilíbrio vincular (Cincunegui, Kleiner, & Woscoboinik, 2004).

 

O desejo de ter um filho encontra-se nos núcleos inconscientes sendo, portanto, enigmático e representante do narcisismo dos pais. É resultante da história real ou imaginada do sujeito e tem sua origem nas vicissitudes da sexualidade infantil (Ribeiro, 2004). Esse desejo transita em três espaços representacionais: o individual, o vincular e o social. No espaço individual ocorrem as identificações primárias e secundárias com os primeiros objetos de amor, a fantasmática que permeia as diferentes ideias acerca da origem da vida, as diferenças sexuais e a sedução. No espaço vincular os acordos e pactos inconscientes selam o vínculo de aliança, aqui protagonizados pelo projeto de parentalidade. No espaço social, a sociedade confere ao casal um lugar e esse, em troca, por meio da descendência, garante a continuidade de seus valores e ideais (Cincunegui et al., 2004).

 

E quando esse desejo se depara com a infertilidade, com corpos que não podem procriar? Muito tem se falado a respeito das implicações desse impedimento na vida dos casais, tais como a reativação de uma ferida narcísica, podendo abalar os referenciais de masculinidade e feminilidade, a vivência de um luto permanente (Melamedoff, 2005; Urdapilleta, 1998), nem sempre reconhecido pela sociedade (Balmaceda et al., 2001), a perda da fantasia de estabelecer um elo entre o passado e o futuro (Burns, 2005), entre outras. É uma experiência potencialmente traumática, devastadora (Ribeiro, 2004), vivida como “terremoto” que abala estruturas (Weiss, 2006). Ademais, produz desdobramentos incapacitantes, que se ampliam a outros campos da vida do sujeito. O filho que não vem é aquele que não reassegura o narcisismo parental. Isso torna tais indivíduos órfãos de filhos.

 

E qual é a realidade enfrentada pelos casais que necessitam de um terceiro para procriar, cujas fendas psíquicas foram aplacadas pela concepção, mas os medos e angústias inerentes à gestação se amplificam com as ameaças de contrair o vírus? Para eles, esse pode ser um período de monitoramento constante da saúde da dupla e de quem com ela convive. A vivência dessa gestação pode ser fortemente ameaçada por fantasias e fantasmas, medos e ansiedades já ancorados no psiquismo desse casal, trazendo novos desafios a serem vencidos.

 

Em todas as situações previamente citadas (interrupção, adiamento do tratamento ou vivência da gestação pós-tratamento) esses casais estão se deparando com as restrições impostas pela necessidade de se proteger contra um inimigo invisível: o coronavírus. Ansiedades, frustrações e medos, já presentes pela ameaça de não poder ter um filho, ganham força e, por sua urgência, aumentam o risco de se tornarem uma catástrofe psíquica, a exemplo do mundo externo. O período de espera é também de vulnerabilidade, desejo frustrado, desamparo e incertezas. Há um limite imposto pelo próprio corpo, que causa dor e sofrimento, ao qual se agrega aquele advindo da real impossibilidade de dar continuidade à busca do projeto de torna-se pai/mãe ou da fantasia de interrupção da gestação. Aqueles que viabilizariam a concretização desse projeto, ou seja, o médico e sua equipe, ora idealizados por alguns, podem tornar-se, nesse momento, a materialização da infertilidade, aquela que impede ou retarda a chegada do filho.

 

Essa condição pode impedir a articulação entre espera e esperança, entre afetos e suas representações, entre percepção da realidade externa e autoproteção, entre desejo e limites. A dimensão narcisista do desejo de cada um dos integrantes desse vínculo conjugal encontrará, nessa vivência, uma oportunidade de expressão de sua pré-história, agora atravessada pela falta de referências anteriores, contando apenas com o ineditismo da situação e sua capacidade própria de transformação.

 

 

Considerações Finais

 

Nos encontramos em uma situação sem precedentes, que nos impõe medo, nos fragiliza e escancara nossa vulnerabilidade – do corpo biológico e do psiquismo. A globalização democratizou o medo, a fragilidade, a ameaça. Habitamos um mundo volátil em que as mudanças causadas pela pandemia se modificam a cada dia, gerando incerteza. Não se pode prever o que virá desse inimigo insidioso, mas o que se sabe é da sua complexidade, da trama que se forma a partir da interdependência de vários fatores, como economia, saúde física, convivência intensa, realização de projetos, entre outros fatores, e em especial do projeto de ter filhos, foco deste trabalho.

 

As trajetórias que conduzem os casais a tratamentos por técnicas de reprodução assistida são dolorosas e desgastantes dos pontos de vista físico e emocional. Desejos não realizados, sonhos ameaçados, frustrações constantes, narcisismo ferido.

 

Nesse momento, vivências traumáticas da pandemia podem reativar velhas angústias, incrementar sentimentos de desamparo e de medo, terreno fértil para a desesperança. Nosso papel é ajudar esses indivíduos a ouvirem a si próprios, como sujeitos únicos, trazendo o entendimento que vai além do projeto de serem pais. É necessário acolhê-los na sua singularidade, proporcionando uma escuta que possa contribuir na escrita de suas histórias.

 

 

 

Referências
Balmaceda, R., Fernandez, O., Fernandez, E., Fabres, V., Huidobro, A., Sepúlveda, J., & Zegers, F. (2001). Tener un hijo: Conociendo la infertilidad y los caminos para resolverla. Santiago, Chile: Publicações Técnicas Mediterrâneo.

 

Birman, J. (2014). O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro, Brasil: Civilização Brasileira.

 

Brandão, C. M. M. B. B. (2020). A clínica psicanalítica em tempos de pandemia. Recuperado de: https://www.cibelebrandao.com.br/2020/05/31/a-clinica-psicanalitica-em-tempos-de-pandemia/

 

Burns, L. H. (2005). Psychological changes in infertility patients. In A. Rosen & J. Rosen (Eds.), Frozen dreams: Psychodynamic dimensions of infertility and assisted reproduction (pp. 3-29). New York, USA: The Analytic Press.

 

Cincunegui, S., Kleiner, Y., & Woscoboinik, P. R. (2004). La infertilidad en la pareja: Cuerpo, deseo y enigma. Buenos Aires, Argentina: Lugar Editorial.

 

Gampel, Y. (2020). Um vazio presente, cheio de ausência. Recuperado de: http://www.psychoanalysis.today/PDF_Articles/IPA_Article_Um-vazio-presente,-cheio-de-aus%c3%aancia_Prof.-Dr.-phil.-Yolanda-Gampel.pdf

 

Horenstein, M. (2020). Del “peligro extranjero” a la necesidad de cuidar a los demás de uno mismo. Recuperado de: https://calibanrlp.com/pt/del-peligro-extranjero-a-la-necesidad-de-cuidar-a-los-demas-de-uno-mismo-2

 

Mari, J. J. (2020). O pior da pandemia se dará na saúde mental. Recuperado de: https://www.fatosrecentes.com.br/o-pior-da-pandemia-se-dara-na-saude-mental-08-05-2020-opiniao/

 

Melamedoff, S. G. (2005). Esterilidad, aspectos médicos, psicológicos y vivenciales. Buenos Aires, Argentina: Akadia Editorial.

 

Ribeiro, M. (2004). Infertilidade e reprodução assistida: Desejando filhos na família contemporânea. São Paulo, Brasil: Casa do Psicólogo.

 

Urdapilleta, L. (1998). Duelos en infertilidad. Journal of Obstetricia y Ginecología Latino-Americanas, 56(1), 47-54.

 

Verztman, J., & Romão-Dias, D. (2020). Catástrofe, luto e esperança: O trabalho psicanalítico na pandemia de COVID-19.

 

Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 23(2), 269-290. doi: 10.1590/1415-4714.2020v23n2p269.7

 

Weiss, T. K. (2006). O impacto da infertilidade e seu tratamento nos casais. In R. M. M. Melamed & J. Quayle (Org.), Psicologia em reprodução assistida: Experiências brasileiras (pp. 105-119). São Paulo, Brasil: Casa do Psicólogo.

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